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As vicissitudes históricas da doutrina de Karl Marx

V. I. Lênin

1 de Dezembro de 1902

 

Marx a formulou pela primeira vez em 1844. O Manifesto Comunista de Marx e Engels, publicado em 1848, oferece já uma exposição completa e sistemática desta doutrina, não superada até hoje. Desde então, a história universal se divide claramente em três grandes períodos) da Revolução de 1848 à Comuna de Paris (1871); 2) da Comuna de Paris à Revolução Russa (1905); 3) da Revolução Russa a nossos dias. Lancemos um olhar às vicissitudes da doutrina de Marx em cada um destes períodos.


O primeiro período


A princípios do primeiro período, a doutrina de Marx era muito menos que dominante. Era apenas uma de tantas outras frações ou correntes, extraordinariamente numerosas, do socialismo. Imperavam certas formas de socialismo afins, no fundo, ao nosso populismo: incompreensão da base material do progresso histórico, incapacidade de discernir o papel e a importância de cada uma das classes da sociedade capitalista, encobrimento da essência burguesa das reformas democráticas com ajuda de diversas frases pseudo socialistas sobre o “povo”, a “justiça”, o “direito” etc. A Revolução de 1848 deu um golpe mortal a todas essas formas barulhentas, dissonantemente multicoloridas do socialismo pré-marxista. A revolução permite diferenciar em todos países as distintas classes da sociedade em ação. A matança de operários, que a burguesia republicana consumou em Paris, nas jornadas de junho de 1848, demonstrou definitivamente que só o proletariado é socialista por natureza. A burguesia liberal teme cem vezes mais a independência desta classe do que qualquer reação, seja qual for. O covarde liberalismo arrasta-se a seus pés Os camponeses conformam-se com a abolição dos restos do feudalismo e passam para o lado da ordem, e só às vezes vacilam entre a democracia operária e o liberalismo burguês. Toda doutrina de um socialismo que não seja de classe e de uma política que não seja de classe, mostra-se como um simples absurdo. A Comuna de Paris (1871) coroou esse desenvolvimento das transformações burguesas; a república, ou seja, a forma de organização do Estado em que as relações de classe manifestam se de maneira menos dissimulada, deve a sua realização somente ao heroísmo do proletariado. Em todos os demais países europeus, uma evolução mais confusa e menos acabada conduz à formação dessa mesma sociedade burguesa. Em fins do primeiro período (1848-1871), período de tormentas e revoluções, morre o socialismo anterior a Marx. Nascem os partidos proletários independentes: a Primeira Internacional (1864-1872) e a social-democracia alemã.


O segundo período


O segundo período (1872-1904) distingue-se do primeiro por seu caráter pacífico, pela ausência de revoluções. O Ocidente terminara as revoluções burguesas. O Oriente ainda não estava maduro para elas. O Ocidente entra na etapa de preparação “pacífica” para a época das transformações vindouras. Constituem-se em todos os lados partidos socialistas, proletários pela sua base, que aprendem a utilizar o parlamentarismo burguês, a criar sua imprensa diária, suas instituições culturais, seus sindicatos e suas cooperativas. A doutrina de Marx obtém um triunfo completo e vai-se propagando. Lenta, porém inflexivelmente, continua o processo de recrutamento e concentração de forças do proletariado, que se prepara para as batalhas futuras.

A dialética da história é tal que o triunfo teórico do marxismo obriga seus inimigos a se disfarçarem de marxistas. O liberalismo, interiormente apodrecido, tenta renascer sob a forma de oportunismo socialista. O período de preparação das forças para as grandes batalhas é interpretado como sendo de renúncia a essas batalhas. A melhora da situação dos escravos para a luta contra a escravidão assalariada é interpretada no sentido de que os escravos podem vender por centavos seu direito à liberdade. Prega-se covardemente a “paz social” (isto é, a paz com os escravistas), a renúncia à luta de classes etc. Os oportunistas detêm muitos adeptos entre os parlamentares socialistas, entre os diversos funcionários do movimento operário e os intelectuais “simpatizantes”.


O terceiro período


Os oportunistas ainda não se haviam cansado de exaltar a “paz social” e a possibilidade de evitar as tormentas sob a “democracia”, quando se abriu na Ásia uma nova fonte de formidáveis tormentas mundiais. À Revolução Russa seguiram-se as revoluções turca, persa e chinesa. Hoje atravessamos precisamente a época dessas tormentas e de sua “repercussão” na Europa. Qualquer que seja a sorte reservada à grande república chinesa, em vista da qual as distintas hienas “civilizadas” afiam, hoje, as presas, não haverá, no mundo, força alguma capaz de restabelecer na Ásia o velho feudalismo, nem de varrer da face da terra o heroico espírito democrático das massas populares dos países asiáticos e semi-asiáticos.


Algumas pessoas, não atentas às condições de preparação e desenvolvimento da luta de massas, haviam caído na desesperação e no anarquismo, influenciadas pelo longo retardamento, na Europa, da luta decisiva contra o capitalismo. Hoje vemos toda a miopia e pusilanimidade que é a desespero anarquista. Ânimo, não desespero, deve inspirar o fato de que oitocentos milhões de homens da Ásia tenham sido incorporados à luta pelos mesmos ideais europeus. As revoluções asiáticas puseram em evidência a mesma falta de caráter e a mesma baixeza do liberalismo, a mesma importância excepcional da independência das massas democráticas, a mesma nítida ruptura entre o proletariado e os burgueses de toda laia. Quem, depois da experiência da Europa e da Ásia, fale de uma política que não seja de classe e de um socialismo que não seja de classe, merece simplesmente ser metido numa jaula e exibido junto com um canguru australiano. A Europa começou a se agitar depois da Ásia, porém não à maneira asiática. O período “pacífico” de 1872-1904 passou à história para sempre. A carestia da vida e a opressão dos trustes provocam a agudeza sem precedente da luta econômica, que pôs em movimento até os operários ingleses, os mais corrompidos pelo liberalismo. Diante de nossos olhos amadurece a crise política até na Alemanha, o país mais “pétreo” dos burgueses e junkers. A furiosa corrida armamentista e a política do imperialismo fazem da Europa atual uma “paz social” que se parece mais que nada a um barril de pólvora, enquanto que a decomposição de todos os partidos burgueses e o processo de maturação do proletariado seguem seu curso incontável. Desde a aparição do marxismo, cada uma destas três grandes épocas da história universal o reconfirmou e proporcionou-lhe novos triunfos. Porém, ainda será maior o triunfo que trará ao marxismo, como doutrina do proletariado, a época que se avizinha.



 

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