Miguel Urbano Rodrigues
Agosto de 2014
Os dirigentes da União Europeia – nomeadamente Merkel, Hollande e Cameron – intensificaram nas últimas semanas as suas críticas à Rússia. O pretexto são os acontecimentos da Ucrânia. Um alvo prioritário é Vladimir Putin. Um dos absurdos dessa campanha é a insistência em apresentarem o presidente da Rússia como um ditador que estaria empenhado numa política que visaria a reconstituição parcial da União Soviética. Um anticomunismo transparente é identificável em crónicas de influentes analistas ocidentais. Não obstante a Rússia ser hoje um país capitalista, slogans bolorentos da guerra fria são retomados. Putin é acusado de recorrer a métodos e à linguagem de comunistas históricos. Até a realização da parada da vitória em Moscovo, a 9 de maio, para comemorar a derrota do Reich nazi, foi interpretada como uma ameaça em Washington e algumas capitais da União Europeia. Uma estranha febre ideológica ganha subitamente atualidade e destacados intelectuais do sistema capitalista divulgam a desproposito entusiásticas apologias do neoliberalismo e exorcizam o marxismo como velharia obsoleta. É nessa atmosfera que se insere o novo discurso anticomunista que, agitando fantasmas, falsifica a História. Na tentativa de apresentarem Marx e Lenin como inimigos da democracia, intervêm figuras exponenciais de uma ideologia inseparável da engrenagem liberticida que ameaça a humanidade e é responsável por crimes monstruosos. Em Portugal os comentadores de serviço na TV, na rádio e nos jornais de "referência" cumprem com zelo a sua tarefa, debitando asneiras no combate ao suposto renascimento do "saudosismo comunista" na Rússia. Creio por isso oportuno e útil recordar fatos e situações históricas que desmontam a atual campanha ideológica do imperialismo. Começarei por chamar a atenção para a falsidade das teses de académicos anticomunistas que atribuem a Lenin um dogmatismo rígido na utilização do marxismo para a compreensão e transformação do mundo. Trata-se de uma grosseira mentira. O fundador do primeiro estado socialista não via no marxismo uma ciência imobilista, de fronteiras definitivas. "Não consideramos de modo algum – escreveu – a teoria de Marx como algo de acabado e intocável, estamos pelo contrário convencidos de que ela apenas assentou a pedra angular da ciência que os socialistas devem fazer avançar em todas as direções, se não querem atrasar-se em relação à vida. Pensamos que para os socialistas russos é especialmente necessária a elaboração independente da teoria de Marx, pois esta teoria oferece apenas postulados gerais orientadores que em particular à Inglaterra se aplicam de maneira diferente da França, à França de maneira diferente da Alemanha, à Alemanha de maneira diferente da Rússia.(1) Lenin repetiu incansavelmente que sem teoria revolucionária não pode triunfar qualquer movimento revolucionário. Mas conseguiu, com imaginação e talento, ser simultaneamente flexível na aplicação do método marxista e intransigente no combate às ideias e manobras daqueles que, afirmando ser marxistas, assumiam na prática posições incompatíveis com a ideologia do autor de O Capital. Contrariamente à convicção de muitos jovens que identificam nos "renovadores" que contribuíram para a social democratização de muitos PCs europeus um fenómeno relativamente recente, o revisionismo do marxismo mergulha as raízes no século XIX. Principiou ainda em vida de Marx e foi permanente. Em 1894, quando Lenin preparava a fundação do futuro partido bolchevique, teve de travar uma luta dura contra os "marxistas legais", tendência liderada pelo alemão Struve que procurava "tomar do marxismo tudo aquilo que é aceitável para a burguesia liberal, incluindo a luta por reformas, abrangendo a luta de classes (sem a ditadura do proletariado), incluindo o reconhecimento "geral" dos ideais socialistas e a substituição do capitalismo por um "novo sistema" e rejeitar "somente" a alma viva do marxismo, o seu caráter revolucionário".
A segunda ofensiva dos oportunistas para desvirtuar o marxismo em benefício da burguesia teve o seu epicentro no partido Social Democrata Alemão, ao tempo muito prestigiado, quando o seu dirigente Edward Bernstein publicou em 1899 uma serie de artigos em que revia teses fundamentais do marxismo. Na sua apologia do reformismo lançou uma palavra de ordem famosa: "o movimento é tudo, o objetivo final quase nada".(2) Lenin e Rosa Luxemburgo arrancaram-lhe a máscara, denunciando-o como um deturpador do marxismo. Para os comunistas "o objetivo final" era tudo e o reformismo de Bernstein apontava para uma conciliação com a burguesia. Na prática, Bernstein retomava teses reacionárias da filosofia de Kant. Mas a sua pregação influenciou um amplo sector do Partido Social Democrata Alemão, então marxista, com repercussões negativas na Rússia.(3) Uma terceira grande ofensiva do revisionismo ocorreu em 1908. Dois filósofos, o austríaco Ernst Mach e o alemão Richard Avenarius, que negavam a existência objetiva do mundo material, difundiram a chamada filosofia da "experiencia crítica", mais conhecida pelo nome de Empirio-criticismo. Segundo eles, os corpos seriam somente "complexos de sensações". Os trabalhos de ambos deram origem a uma corrente de pensamento que se popularizou com o nome de "machismo". Mach sobretudo, embora pretendendo ser marxista, rejeitou o essencial do materialismo histórico e do materialismo dialético. Uma parcela ponderável da intelectualidade progressista europeia aderiu com entusiasmo à essa nova filosofia, aceitando-a como escorada na ciência. Kautsky, abrindo as colunas do órgão central da social-democracia alemã à apologia do Empirio-criticismo, contribuiu para aumentar a confusão gerada. Os mencheviques aderiram imediatamente, mas a propaganda machista perturbou também quadros da fração bolchevique do Partido Operário Social Democrata da Rússia-POSDR-b. Essa influência negativa levou inclusive à formação de um grupo oportunista, os "otzovistas" que defendia a retirada do Parlamento russo (a Duma) dos deputados bolcheviques, afirmando que o Partido deveria realizar apenas atividades ilegais. (4)
O Moderno Revisionismo
Os esforços para destruir o marxismo foram permanentes em vida de Lenin e prosseguiram após a sua morte. Desde o início da I Guerra Mundial uma onda de falso patriotismo varreu a Europa. Tripudiando sobre os seus programas, e violando compromissos assumidos em nome do internacionalismo proletário, partidos que pretendiam ser socialistas votaram os créditos de guerra das grandes potências envolvidas no conflito, tornando-se cúmplices da hecatombe que atingiu a humanidade. Essa opção foi decisiva para o descrédito e agonia da II Internacional. A luta contra o imperialismo perde muito do seu significado, dizia Lenin, se não "estiver indissoluvelmente ligada à luta contra o oportunismo". O grande revolucionário foi, portanto, implacável na denúncia do social-chauvinismo, desmentindo que a defesa da liberdade e dos verdadeiros interesses nacionais fosse a motivação da guerra. A vitória da Revolução Russa criou entretanto, as condições que permitiram a criação da III Internacional. Mas, como era de esperar, a existência da União Soviética foi por si só um incentivo a uma ofensiva permanente em múltiplas frentes contra o marxismo. Finda a II Guerra Mundial, a luta contra o comunismo assumiu facetas muito diferenciadas. Os partidos comunistas europeus tinham desempenhado um grande papel na luta contra o fascismo. Enfraquecê-los, instalar neles o divisionismo, empurrá-los para o antisovietismo e o afastamento do marxismo foi uma constante nas campanhas das burguesias e do imperialismo. No auge da guerra-fria, o Manifesto de Champigny em França, em 1968, quando Waldeck Rochet era secretário-geral do PCF, cumpriu importante papel em debates ideológicos que abriram a porta ao eurocomunismo. Invocando a necessidade de renovar o marxismo, dirigentes como os franceses Georges Marchais, Roger Garaudy e Louis Althusser, o italiano Enrico Berlinguer, o espanhol Santiago Carrillo e outros serão lembrados como arquitetos de um revisionismo que encaminhou os seus partidos para a social democratização. No caso do PCI a guinada à direita funcionou aliás como etapa rumo à sua autodestruição. O revisionismo atuou, porém, sob máscaras muito diferentes. Após a desagregação da União Soviética surgiram em muitos partidos dirigentes que, apresentando-se como empenhados em renovar o marxismo, passaram rapidamente ao ataque ao leninismo e ao centralismo democrático. Alguns acabaram ingressando em partidos socialistas integrados no sistema capitalista. As universidades produziram uma geração de académicos que, principiando por leituras perversas de Marx, não tardaram a procurar justificações para a defesa de políticas neoliberais. Ganharam também alguma notoriedade revisionistas (oportunistas de esquerda) que, pretendendo exibir uma suposta pureza marxista, recorreram a textos de Gramsci e de Che Guevara para lhes deturparem o pensamento em obras de cariz antissoviético, aplaudidas pelo imperialismo. Uma modalidade de anticomunismo, mais subtil, é a praticada por intelectuais que, criticando o capitalismo, identificam nos movimentos sociais a força revolucionaria vocacionada para salvar a humanidade (John Holloway, Bernard Cassen, Ignacio Ramonet, Boaventura Sousa Santos, Hans Dietrich, etc) negando aos partidos protagonismo na luta contra o sistema. Aceitar em Marx o economista e rejeitar o ideólogo é atitude frequente em cenáculos de intelectuais que satanizam Lenin.
O Perigo Oportunista
A palavra oportunista tornou-se incómoda para muitos dirigentes de partidos comunistas europeus e latino-americanos. Essa atitude traduz a consciência de estratégias e táticas que afetaram a unidade do movimento comunista internacional. As suas últimas reuniões confirmaram a existência de discordâncias profundas que o debilitaram. O panorama atual é muito complexo. Na Europa, a maioria dos partidos estão hoje integrados no Partido da Esquerda Europeia, ombro a ombro com partidos burgueses como o Die Linke alemão, o Syriza da Grécia e o Bloco de Esquerda de Portugal. A função inconfessada desse partido é neutralizar os trabalhadores, dificultando a sua participação nas grandes lutas contra o imperialismo e as políticas neoliberais impostas na União Europeia. Não surpreende que o PEE conte com a simpatia dos media controlados pelo capital e a benevolência dos Governos que o representam. Muitos partidos comunistas foram contaminados nas últimas décadas. Alguns participaram na orquestra do antisovietismo. Robert Hue, quando secretário-geral do PCF, teve o descaramento de afirmar que "tudo foi negativo na União Soviética". O Partido Comunista Italiano desapareceu depois de mudar de nome. O Partido Comunista Francês, em rápida metamorfose, renegou o passado e transformou-se numa caricatura de partido operário. O Partido Comunista de Espanha, hoje antileninista, diluiu-se numa Esquerda Unida inofensiva. Uma epidemia de oportunismo instalou-se no movimento comunista internacional. Uma das suas manifestações é a crítica – ostensiva ou indireta – a Partidos que, na fidelidade aos princípios continuam a assumir-se como marxistas-leninistas. São visados entre outros o Partido Comunista da Grecia-KKE, o Partido Comunista do México-PCM, e o Partido Comunista Brasileiro-PCB. Não cabe neste artigo comentar a estratégia desses partidos revolucionários. Não me identifico com todas as posições que assumem. Mas eles me fazem recordar que o Partido Comunista Português, pela fidelidade aos princípios e à sua história, resistiu vitoriosamente com firmeza à vaga de anticomunismo que, sobretudo no início dos anos 90, descaracterizou ou destruiu outros. Hoje, é precisamente essa fidelidade aos princípios do KKE, do PCM e do PCB, é a sua firmeza no combate ao revisionismo e na denúncia do oportunismo que me inspiram respeito e admiração. Eles e outros fundadores da Revista Comunista Internacional são hoje uma minoria no Movimento Comunista Internacional. Mas a coerência demonstrada na fidelidade ao pensamento e obra de Marx e a coragem com que assumem a herança de Lenin contam com a minha solidariedade fraterna.
Serpa e Vila Nova de Gaia, Agosto de 2014
Fonte: marxists.org
Notas de rodapé:
(1) V.Lenin, O Nosso Programa, Obras Completas, in Tomo 4, pág. 184
(2) V.I.Lenin, A Falência da II Internacional, idem, Tomo 26, pág. 227
(3) V.Lenin, Uma Orientação Retrógrada na Social-democracia Russa, idem, Tomo 4, pág. 265
(4) V.I.Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo, Edições Avante! 1982, Lisboa
Quem foi Miguel Urbano Tavares Rodrigues?
Jornalista e escritor; militante histórico do Partido Comunista Português. Começou a carreira de escritor, ainda jovem, quando frequentava o curso de Letras na hoje Universidade de Lisboa, no Diário de Notícias (1949-1956) e depois, ainda capital portuguesa, no Diário Ilustrado (até 1957). Pressionado pela censura salazarista, deixou o país e fixou-se no Brasil: aqui esteve de 1957 a 1974, foi editorialista de O Estado de S. Paulo e, na primeira metade dos anos 1970, editor internacional da revista Visão – ao mesmo tempo em que participava do Portugal Democrático, órgão dos antifascistas portugueses editado, entre 1956 e 1975, também em São Paulo.
A aventura que foi o sequestro do “Santa Maria”, em 1961 – a famosa operação Dulcineia, capitaneada por Henrique Galvão (1895-1970) –, tornou-o amplamente conhecido e, de algum modo, conscientizou-o da necessidade de um combate mais organizado para a derrubada do regime de Salazar.
Simpático ao socialismo, três anos depois vinculou-se ao Partido Comunista Português/PCP (certa feita, observou que esta decisão, que marcaria toda a sua vida, fora influenciada pela leitura, em 1961, do romance O caminho das tormentas, de Alexei Tolstoi). A Revolução dos Cravos possibilitou o seu regresso a Portugal. Logo assumiu a redação do Avante!, órgão oficial do PCP e, em 1976, a direção de O diário, jornal de massas que circulou até 1990. A partir de 1986, dividiu o seu trabalho editorial com a intervenção política institucional: começou na Assembleia Municipal de Moura, passou como deputado pela Assembleia da República (1990-1995) e chegou à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.
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