Luiz Carlos Prestes
Março de 1980
Apresentação:
Afim de conhecer nossos próprios heróis e a história do movimento comunista brasileiro, hoje trazemos para vocês a carta de Luis Carlos Prestes, antigo secretário-geral do PCB e talvez o maior nome e comunista que já pisará nesse país.
Essa carta nascera de um momento em que o Partido Comunista Brasileiro se encontrava em uma crise interna que tinha suas origens tanto na ditadura, quanto em decorrência de sua linha política adotada desde a década de 60. Devemos compreender nosso passado, as contradições que o movimento carregou em seu seio, seus erros, acertos, problemas e as soluções encontradas. É necessário entendermos que o movimento comunista não nasce alheio a problemas, não se constrói sem contradições, sem a própria luta interna e que é no seio dessa luta que nasce o desenvolvimento do partido.
Companheiros e amigos!
De regresso ao Brasil, pude nos meses já decorridos, entrar em contato direto com a realidade nacional e melhor avaliar os graves problemas que enfrenta o PCB, o que me leva ao dever de dirigir-me a todos os comunistas, a fim de levantar algumas questões que, em minha opinião, tornaram-se candentes para todos os que, em nosso País, de uma ou de outra forma, interessam-se pela vitória do socialismo em nossa Terra. E é baseado no meu passado de lutas e de reconhecida dedicação à causa revolucionária e ao PCB, que me sinto com a autoridade moral para dizer-lhes o que penso da situação que atravessamos.
Sinto-me no dever de alertar os companheiros e amigos para o real significado da vasta campanha anticomunista que vem sendo promovida nas páginas dá imprensa burguesa. Campanha esta visivelmente orquestrada pelo regime ditatorial, visando a desmoralização, a divisão e o aniquilamento do PCB. Fica cada vez mais evidente que, através de intrigas e calúnias, o inimigo de classe – após nos ter desferido violentos golpes nos últimos anos – pretende agora minar o PCB a partir de dentro, transformando-o num dócil instrumento dos planos de legitimação do regime. Este é o motivo pelo qual as páginas da grande imprensa foram colocadas à disposição de alguns dirigentes do PCB, enquanto em relação a outros o que se verifica é o boicote e a tergiversação de suas opiniões. Basta lembrar a matéria publicada no Jornal do Brasil de 3 de fevereiro último, quando esse jornal falseia a verdade ao dizer que me recusei a manifestar minha opinião e, ao mesmo tempo, serve de veículo a uma série de calúnias e acusações que lhe teriam sido fornecidas por algum dirigente que não teve a coragem de se identificar.
Seria de estranhar, se não estivesse claro o objetivo deliberado de liquidação do PCB, a preocupação, revelada insistentemente, pela imprensa burguesa com a democracia interna e a disciplina em nossas fileiras. Os repetidos editoriais e comentários que vem sendo publicados ultimamente a esse respeito são sintomáticos. Demonstram o propósito do regime de desarticular as forças de oposição e, em particular, os comunistas para melhor pôr em prática a estratégia de realizar mudanças em sua estrutura política visando preservar os interesses dos grupos monopolistas nacionais e estrangeiros que representa.
Diante de tal situação não posso calar por mais tempo. Tornou-se evidente que o PCB não está exercendo um papel de vanguarda e atravessa uma séria crise já flagrante e de conhecimento público, que está sendo habilmente aproveitada pela reação no sentido de tentar transformá-lo num partido reformista, desprovido do seu caráter revolucionário e dócil aos objetivos do regime ditatorial.
Devo destacar que, não obstante o heroísmo e abnegação dos militantes comunistas que sacrificaram suas vidas e dos demais que contribuíram ativamente na luta contra a ditadura e para as conquistas já alcançadas por nosso povo, e pelas causas justas por que tem combatido o PCB em sua longa existência, é necessário, agora, mais do que nunca, ter a coragem política de reconhecer que a orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não temos respostas para os novos e complexos problemas que nos são agora apresentados pela própria vida, o que vem sendo refletido na passividade, falta de iniciativa e, inclusive, ausência dos comunistas na vida política nacional de hoje.
A crise que atravessa o PCB expressa-se também na falência de sua direção que, entre outras graves deficiências, não foi capaz de preparar os comunistas para enfrentar os anos negros do fascismo, facilitando à reação obter êxito em seu propósito de atingir profundamente as fileiras do PCB, desarticulando-o em grande parte. Não foi a direção do PCB capaz nem ao menos de cumprir o preceito elementar de separar com o necessário rigor a atividade legal da ilegal. Inúmeros companheiros tombaram nas mãos da reação em conseqüência da incapacidade da direção, que não tomou as providências necessárias para evitar o rude golpe que atingiu nossas fileiras nos anos de 1974 e 1975.
Ao mesmo tempo, graves acontecimentos tiveram lugar na direção do PCB, que, devido à situação de clandestinidade em que nos encontramos, estou impossibilitado de revelar de público. Tais circunstâncias estão sendo utilizadas pela atual direção do PCB para desencadear uma onda de boatos e calúnias e para, numa tentativa desesperada de se manter no poder e conservar o status-quo, ocultar a verdade da maioria dos companheiros. Assim, vem sendo levantada a bandeira da unidade do PCB para na realidade encobrir uma atividade divisionista e de simples acobertamento de graves fatos ocorridos na direção. Na verdade, uma real unidade em torno de objetivos politicamente claros e definidos inexiste há muito tempo.
Nessas condições, sinto-me no dever de alertar os comunistas para a real situação da atual direção do PCB: uma direção que não funciona como tal e não é capaz de exercer o papel para o qual foi eleita, um Comitê Central em que não é exercido o princípio da direção coletiva – caracterizado pela planificação e o controle das resoluções tomadas pela maioria —, no qual reina a indisciplina e a confusão, em que cada dirigente se julga no direito de fazer o que entende. Na prática, inexiste uma direção do PCB. A situação chegou a tal ponto que fatos e, assuntos reservados, que eram de conhecimento exclusivo dos membros do CC, estão sendo revelados à polícia por intermédio das páginas da imprensa burguesa, causando a justa indignação da grande maioria de nossos companheiros e amigos.
Sem me propor, nesta carta, a analisar as causas profundas que determinaram a situação a que chegou o movimento comunista em nossa Terra, considero, no entanto, necessário tornar claros os meus pontos de vista sobre algumas questões fundamentais, de forma que os companheiros e amigos possam julgar sobre sua justeza. Ao mesmo tempo, quero deixar claro que não me eximo de minha parcela de responsabilidade e me considero o principal responsável pelos erros e deformações existentes no PCB. Minha atitude não é de fugir à necessária autocrítica – em palavras e na prática —, mas, ao contrário, de tomar a iniciativa de torná-la pública, procurando, assim, contribuir para o avanço da luta pelos ideais socialistas em nosso País e para a reorganização do movimento comunista do Partido Comunista.
Numa atitude diametralmente oposta, a atual direção do PCB – apesar dos graves acontecimentos ocorridos nos últimos anos – nega-se a uma séria e profunda autocrítica. Quando muito, satisfaz-se com a realização de repetidas e já desmoralizadas autocríticas formais, que, entretanto, nunca se tornam uma realidade palpável. Assim, nega-se a direção atual a reconhecer que a situação do País sofreu grandes transformações, tornando necessária uma ampla discussão democrática de todos os problemas, incluindo as resoluções do último Congresso do PCB. Recusa-se a analisar com espírito crítico se são de todo acertadas as resoluções desse Congresso e pretende ainda agora apresentá-las como um dogma indiscutível para, com base nelas, exigir uma suposta unidade partidária, que lhe permita encobrir e conservar por mais algum tempo a atual situação do Partido e de sua direção.
Na verdade, a justa preocupação da maioria dos comunistas com a unidade do PCB vem sendo utilizada pela atual direção como um biombo para tentar ocultar a falta de princípios reinante nessa direção, o apego aos cargos e postos, o oportunismo dos que mudam de posição política para atender a interesses pessoais, a tradicional conciliação em torno de formulações genéricas que nada definem e que visam apenas a manutenção do status-quo, deixando, ao mesmo tempo, as mãos livres para que cada dirigente faça o que bem entenda. Citarei apenas um exemplo: o mesmo Comitê Central que em outubro de 1978 aprovara e distribuíra ao Partido um documento político, contra o qual votaram apenas dois membros da direção, poucos meses depois, no começo de 1979, se propunha a aprovar um novo documento com orientação política oposta ao primeiro, sem antes ter feito um balanço da aplicação e dos resultados obtidos com a política apresentada em outubro de 78. O meu repúdio, na qualidade de Secretário Geral do PCB, a tal tipo de procedimento levou a que a maioria do CC, revelando mais uma vez sua verdadeira face oportunista e total falta de princípios, recuasse e se chegasse à aprovação de um documento de conciliação, anódino e inexpressivo, em maio do ano passado.
O oportunismo, o carreirismo e compadrismo, a falta de uma justa política de quadros, a falta de princípios e a total ausência de democracia interna no funcionamento da direção, os métodos errados de condução da luta interna, que é transformada em encarniçada luta pessoal, em que as intrigas e calúnias passam a ser prática corrente da vida partidária adquiriram tais proporções, que me obrigam a denunciar tal situação a todos os comunistas. Não posso admitir que meu nome continue a ser usado para dar cobertura a uma falsa unidade, há muito inexistente. Reconhecendo que sou o principal responsável pela atual situação a que chegaram o PCB e sua direção, assumo a responsabilidade de denunciá-la a todos os companheiros, apelando para que tomem os destinos do movimento comunista em suas mãos.
Quero lembrar ainda que, para cumprir o papel revolucionário de dirigir a classe operária e as massas trabalhadoras rumo ao socialismo, é necessário um partido revolucionário que baseado na luta pela aplicação de uma orientação política correta conquiste o lugar de vanguarda reconhecida da classe operária. Um partido operário pela sua composição e pela sua ideologia, em que a democracia interna, a direção coletiva e a unidade ideológica, política e orgânica seja uma realidade construída na luta. Somos obrigados a reconhecer que este não é o caso do PCB. Por isso mesmo, tornou-se imperioso para todos os comunistas tomar consciência da real situação existente e começar a reagir, formulando novos métodos de vida partidária realmente democráticos e efetivamente adequados às tarefas que a luta revolucionária coloca diante de nós; é necessário reagir às arbitrariedades e deformações que já atingem proporções alarmantes e dar início a um processo de discussão realmente democrático, que venha tornar possível a eleição, em todos os níveis partidários, de direções que realmente sejam a expressão democrática da vontade da maioria dos comunistas. É necessário lutar por um outro tipo de direção, inteiramente diferente da atual, com gente nova, com comunistas que efetivamente possuam as qualidades morais indispensáveis aos dirigentes de um partido revolucionário. Não é mais admissível a perpetuação da atual direção que está levando o PCB à falência em todos os terrenos.
A convocação do VII Congresso do PCB, dentro dessa perspectiva, deve ser transformada no início de um processo de ampla discussão, por parte de todos os comunistas, não só das linhas gerais de nossa política, como de uma série de aspectos da atividade da direção. Esta é a oportunidade de cobrar da direção tudo que aconteceu nos últimos anos: a falta de preparação para enfrentar a repressão fascista e o conseqüente desmantelamento de todo o aparelho partidário; as prisões e os desaparecimentos de tantos companheiros e amigos; a ausência de democracia interna, o arbítrio, a falta de planejamento e controle das tarefas decididas; o comportamento dos dirigentes diante do inimigo de classe; a execução prática do chamado "desafio histórico" aprovado no VI Congresso e a falta de empenho em organizar o partido na classe operária; a atividade política da direção nas diferentes frentes de trabalho; a orientação política seguida na Voz Operária; e muitos outros aspectos do trabalho de direção.
Considero imprescindível destacar que o VII Congresso só cumprirá um papel realmente renovador, tanto no que diz respeito à elaboração de uma orientação política correta e adequada às novas condições existentes no País e verdadeiramente representativa da vontade da maioria dos comunistas, como no que concerne à eleição de um novo tipo de direção à altura dessa nova orientação, se os debates preparatórios e todos os procedimentos de sua realização forem realmente democráticos. Não posso admitir, nem concordar com a volta ao "arrudismo", à utilização de métodos discricionários e autoritários na condução da luta interna, à manipulação dos debates, à rotulação das pessoas com as mais variadas etiquetas do tipo "esquerdista", "eurocomunista", "ortodoxo", "duro", etc. Não é admissível que se continue a usar de expedientes, como a nomeação de delegados a conferências partidárias, para as quais deveriam ser democraticamente eleitos pelas organizações a que pertencem.
A democracia no processo de realização do VII Congresso precisa ser defendida com empenho por todos os comunistas. É necessário que todos – e em particular os dirigentes – falem abertamente o que pensam; devemos repudiar o comportamento dos que calam de público para falarem pelas costas ou transmitirem informações sigilosas à imprensa burguesa sem ter sequer a coragem de se identificar.
Quero ainda dizer que tenho conhecimento do quanto estou sendo caluniado e atacado pelas costas. Isso é mais uma prova dos métodos falsos a que me referi acima. Devo deixar claro que, não obstante ser o primeiro a achar que, inclusive pela minha idade já avançada, deveria deixar a direção do PCB, só poderei concordar com a minha substituição num Congresso realmente democrático. Não aceitarei meu afastamento decidido por algum tipo de Congresso-farsa, manipulado e antidemocrático, em que os próprios destinos do PCB e de nossa causa revolucionária corram perigo.
Sei que poderei vir a ser derrotado no Congresso; o importante, entretanto, é que este seja realmente democrático e verdadeiramente representativo da maioria dos comunistas. E para isso é necessário que sejam criadas as devidas condições, pois na situação atual, de virtual desmantelamento do PCB pela reação, de permanência da Lei de Segurança Nacional e de séria crise interna, são praticamente impossíveis um debate e uma participação realmente democráticos num Congresso realizado na clandestinidade. Temos que reconhecer que, nessas condições, o VII Congresso seria uma farsa, inaceitável para a grande maioria dos comunistas. Trata-se, portanto, de prioritariamente dar início a uma ampla campanha pela legalização do PCB, desmascarando o anticomunismo daqueles que a pretexto de defender uma suposta democracia pugnam pela manutenção dos odiosos preceitos da Lei de Segurança Nacional que proíbem a reorganização do Partido Comunista. É preciso esclarecer as amplas massas de nosso povo, mostrando-lhes que o PCB sempre esteve nas primeiras fileiras de todas as lutas democráticas em nosso País e sempre foi a principal vítima da repressão e do fascismo.
É necessário deixar claro que a legalização do PCB terá que ser uma conquista do movimento de massas e de todas as forças realmente democráticas em nosso País. Os trâmites legais junto ao Tribunal Superior Eleitoral estarão fadados ao fracasso, se a legalidade do PCB não se transformar numa exigência das massas, que, nas ruas, imponham sua vontade, como o fizeram em 45. A ditadura jamais nos concederá a legalidade sem luta; o que ela tenta, neste momento, é, aproveitando-se da crise interna do PCB, forçá-lo a um acordo. Acordo este que significaria um compromisso com a ditadura, incompatível com o caráter revolucionário e internacionalista do PCB, compromisso que colocaria o Partido a reboque da burguesia e a serviço da ditadura e inaceitável, portanto, à classe operária e a todos os verdadeiros revolucionários.
Empenhar-se numa intensa campanha pela legalização do PCB e pela conseqüente realização do VII Congresso na legalidade não deve, entretanto, servir de obstáculo ao início do debate preparatório para o Congresso, que poderá ir-se ampliando com o desenvolvimento da própria campanha pelo registro legal do PCB. A luta pela nossa legalidade é inseparável do empenho para que a democracia interna venha a ser uma realidade. Devemos ter claro que num país como o nosso, com a complexidade dos problemas que temos pela frente, é necessário um Partido Comunista de massas, o que só poderá se transformar em realidade se vier a ser um partido verdadeiramente democrático, não apenas em seu empenho na luta pela democracia em nossa Terra, como também em todos os aspectos de seu funcionamento.
A gravidade da crise que atravessa o PCB, a flagrante ausência de democracia interna e as profundas deformações no terreno da organização não estão dissociadas dos erros e desvios em nossa orientação política. Não se pode separar a elaboração de uma estratégia revolucionária da estratégia de construção de uma organização revolucionária. Ambas se condicionam reciprocamente. A estratégia revolucionária é a condição da eficiência da organização, e a organização é a condição da formulação de uma estratégia correta.
Sem pretender, nesta carta, uma análise aprofundada dos erros a meu ver cometidos na elaboração de nossa orientação política em diferentes períodos da história do PCB – tarefa que me proponho a realizar posteriormente —, quero apenas me referir a algumas questões que me parecem de maior atualidade e urgência, deixando clara minha posição.
Assim, considero importante destacar que, apesar do total arbítrio e do autoritarismo dominantes no País a partir do golpe reacionário de 1964, os governos que se sucederam em 16 anos não resolveram nem um só dos problemas fundamentais da Nação. Ao contrário, foram todos agravados. Aumentou a miséria dos trabalhadores, agravaram-se as desigualdades sociais, cresceu consideravelmente a dependência do País ao imperialismo, tornou-se mais crítica a situação do campo com as transformações capitalistas ocorridas na agricultura e as modificações introduzidas no sistema latifundiário que levaram, entre outras conseqüências, à proliferação do minifúndio e dos chamados "bóias-frías". Simultaneamente, cresceu vertiginosamente a criminalidade e a violência nas grandes cidades, agravaram-se problemas antigos como o do menor abandonado, do desemprego, a falta de assistência médica, o analfabetismo e a prostituição de menores. Isto comprova, mais uma vez, que o desenvolvimento capitalista não é capaz de resolver os problemas do povo e nem sequer de amenizá-los.
A solução desses e demais problemas fundamentais exige transformações sociais profundas, que só poderão ser iniciadas por um poder que efetivamente represente as forças sociais interessadas na liquidação do domínio dos monopólios nacionais e estrangeiros e na limitação da propriedade da terra, com o fim do latifúndio. E é por isso que a luta atual pela derrota da ditadura e a conquista das liberdades democráticas é inseparável da luta por esse tipo de poder que, pelo seu próprio caráter, representará um passo considerável no caminho da revolução socialista no Brasil.
Vejo a luta pela democracia em nossa Terra como parte integrante da luta pelo socialismo. É no processo de mobilização pela conquista de objetivos democráticos parciais, incluindo as reivindicações não apenas políticas, mas também econômicas e sociais, que as massas tomam consciência dos limites do capitalismo e da necessidade de avançar para formas cada vez mais desenvolvidas de democracia, inclusive para a realização da revolução socialista.
É de acentuar que no Brasil sempre dominaram regimes políticos autoritários. Mesmo nos melhores períodos de vigência da Constituição de 1946, as liberdades sempre foram muito limitadas e, principalmente, os trabalhadores nunca tiveram seus direitos mais elementares respeitados e reconhecidos. Tivemos sempre democracia para as elites, enquanto, para as grandes massas de nosso povo, o que sempre existiu foram a violência policial, tanto dos chefes políticos e caciques do interior, como das autoridades nas grandes cidades, e o total desrespeito pela pessoa humana e pelos direitos do cidadão.
Justamente por isso, nós comunistas, ao lutarmos agora pela derrota da ditadura, devemos fazê-lo esclarecendo as massas e dirigindo-as rumo à conquista de um regime efetivamente democrático. Lutamos agora por um regime em que sejam assegurados os direitos políticos, econômicos e sociais dos trabalhadores. A derrota da ditadura deve levar a um regime em que os trabalhadores tenham o direito de participarem ativamente na solução de todos os problemas da Nação; que assegure o desmantelamento do atual aparelho repressivo, que dê fim ao velho "hábito" das torturas, inclusive para os presos comuns; que garanta o voto livre, universal e direto para todos os cidadãos, incluindo os analfabetos e militares dele ainda privados; que assegure o direito ao trabalho, à educação e saúde, férias remuneradas e aposentadoria para todos os trabalhadores; em que sejam respeitados todos os direitos dos trabalhadores, destacando-se a total independência do movimento sindical do Estado, dos patrões e dos partidos políticos.
Certamente, as características do regime democrático a ser instaurado no País com o fim da ditadura dependerão fundamentalmente do nível de unidade, organização e consciência alcançado pelo movimento operário e popular. Cabe aos comunistas empenhar-se no esforço de mobilização da classe operária e demais setores populares para alcançar formas cada vez mais avançadas de democracia e, nesse processo, chegar à conquista do poder pelo bloco de forças sociais e políticas interessadas em realizar as profundas transformações a que me referi acima, e que deverão constituir os primeiros passos rumo ao socialismo, e, portanto, à mais avançada democracia que a humanidade já conhece – a democracia socialista.
Nós, comunistas, não podemos abdicar de nossa condição de lutadores pelo socialismo, restringindo-nos à suposta "democracia" que nos querem impingir agora os governantes, nem às conquistas muito limitadas alcançadas pela atual "abertura", que na prática exclui as grandes massas populares. Não podemos concordar com uma situação que assegure liberdades apenas para as elites, em que a grande maioria da sociedade continua na miséria e sem a garantia dos mais elementares direitos humanos.
Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores. Ao contrário, para os comunistas, a luta pelas liberdades políticas é inseparável da luta pelas reivindicações econômicas e sociais das massas trabalhadoras. E no Brasil atual, a classe operária está dando provas, cada vez mais evidentes, de que não está mais disposta a aceitar a "democracia" que sempre lhe foi imposta pelas elites e pelas classes dominantes. Os trabalhadores estão passando a exigir sua participação efetiva em um novo regime democrático a ser construído com o fim da ditadura, o que significa que lutarão por uma democracia em que tenham não apenas o direito de eleger representantes ao parlamento, mas lhes sejam assegurados melhores salários e condições mais dignas de vida, em que seus direitos sejam uma realidade e não apenas uma ficção. E o dever dos comunistas é dirigir essas lutas dos trabalhadores, contribuindo para sua unidade, organização e conscientização, mostrando-lhes que é necessário caminhar para o socialismo, única forma de assegurar sua real emancipação.
Simultaneamente, apresenta-se a questão da aliança dos comunistas com outras forças sociais e políticas. No momento atual, o objetivo mais importante a ser alcançado é a derrota da ditadura e, para isto, a conseqüente conquista de reivindicações políticas que ampliem cada vez mais a brecha já aberta no regime e levem ao estabelecimento de uma democracia no País. Não devemos, portanto, poupar esforços no sentido de aglutinar as mais amplas forças sociais e políticas, mesmo aquelas mais vacilantes e que sabemos que nos abandonarão em etapas ulteriores da luta. Seria, no entanto, abdicar de nosso papel revolucionário tratarmos apenas dos entendimentos "por cima", com os dirigentes dos diversos partidos políticos ou correntes de opinião, com as personalidades políticas, esquecendo-nos que para os comunistas o fundamental é a organização, a unificação e a luta permanente pela elevação do nível político da classe operária e das massas populares. Só assim contribuiremos para fortalecer o movimento popular e a frente oposicionista de luta contra a ditadura, compelindo seus setores liberais burgueses mais vacilantes e se definirem com mais clareza, e contribuindo, também, fundamentalmente, para que os trabalhadores venham a ser a força dirigente do conjunto das forças heterogêneas unificadas em ampla frente única.
Só assim agindo, realizarão os comunistas uma política capaz de impulsionar o movimento de massas, uma política que não pode ser a de ficar a reboque dos aliados burgueses, mas, ao contrário, a de não poupar esforços para que as massas assumam a liderança do processo de luta contra a ditadura e pela conquista da democracia, assim como de sua ampliação e aprofundamento continuado.
Não podemos, pois, compactuar com aqueles que defendem "evitar tensões", freando a luta dos trabalhadores em nome de salvaguardar supostas alianças com setores da burguesia. Ao contrário, sem cair em aventuras, é hoje, mais do que nunca, necessário contribuir para transformar as lutas de diferentes setores de nosso povo em um poderoso movimento popular, bem como é dever dos comunistas tomar a iniciativa da luta pelas reivindicações econômicas e políticas dos trabalhadores, visando sempre alcançar a derrota da ditadura e a conquista de uma democracia em que os trabalhadores comecem a impor sua vontade.
Com base na argumentação acima desenvolvida, não se pode deixar de chegar à conclusão lógica de que é totalmente infundada a contraposição, que vem sendo a mim atribuída, entre uma suposta "frente de esquerda" e uma "frente democrática" ou de oposição. Jamais coloquei o problema dessa maneira, o que não passa de mais uma deturpação do meu pensamento, útil àqueles que precisam tergiversar minhas idéias para poder combatê-las. Penso que, para chegarmos à construção de uma efetiva frente democrática de todas as forças que se opõem ao atual regime, é necessário que se unam as forças de "esquerda" – quer dizer, aquelas que lutam pelo socialismo – no trabalho decisivo de organização das massas "de baixo para cima"; que elas se aglutinem, sem excluir também entendimentos entre seus dirigentes, com base numa plataforma de unidade de ação, e que, dessa maneira, cheguem a reunir em torno de si os demais setores oposicionistas, tornando-se a força motriz da frente democrática. Esta é a perspectiva revolucionária de encaminhamento da luta contra a ditadura, a que mais interessa à classe operária e a todos os trabalhadores. Será a constituição em nosso País, pela primeira vez, da unidade de diversas forças que lutam pelo socialismo. Colocam-se contra essa possibilidade os que preferem ficar a reboque da burguesia e que buscam, com isto, mais uma vez, chegar em nosso País a uma democracia para as elites, da qual não participariam os trabalhadores.
Quando me referi à necessidade das diferentes forças de "esquerda" caminharem juntas, tenho em vista a nova situação que vem se formando no País. Estamos vivendo um período, quando a reanimação do movimento operário e popular vem revelando, por um lado, que todas as forças de "esquerda", incluindo o PCB, tem cometido graves erros, tanto de avaliação da situação nacional, como de encaminhamento das soluções necessárias e possíveis e, consequentemente, de atuação. E, por outro lado, a necessidade de formação de uma liderança efetiva, capaz de dirigir as lutas de massas dentro de uma perspectiva revolucionária correia e adequada à situação brasileira. Está, portanto, na ordem do dia a questão da unidade de todos que se propõem a lutar efetivamente por uma perspectiva socialista para o Brasil.
No que diz respeito ao PCB, sou de opinião de que, tendo sido correto combater os desvios "esquerdistas" e "golpistas", após o golpe de 1964, caímos do outro lado, em posições próximas do reboquismo e da passividade. Devemos reconhecer, inclusive, que o PCB não teve a capacidade de apresentar uma alternativa (principalmente uma estratégia) correta de luta contra a ditadura, contribuindo, assim, para que muitos revolucionários honestos, particularmente os jovens que não queriam-se conformar com o arbítrio instaurado no País, enveredassem pelo caminho de ações individuais ou desligadas das massas e que só poderiam conduzir a sucessivas derrotas.
É importante ainda chamar a atenção dos comunistas para o fato de nas fileiras do PCB ter-se convertido a luta justa contra os desvios "esquerdistas" e "golpistas" numa obsessão quase cega, que nos tem levado frequentemente a identificar qualquer atitude ou posição combativa pelas causas justas dos trabalhadores com um suposto "esquerdismo" ou "golpismo".
Tudo isso torna imprescindível que se inicie entre os comunistas, tanto dentro, como fora do PCB, um amplo processo de análise autocrítica das posições das diferentes forças de "esquerda" e, em particular, do PCB. É necessário rever com espírito autocrítico a orientação política que mantivemos em diferentes períodos históricos e em especial, as resoluções aprovadas no VI Congresso e nos anos que se seguiram. Devemos examinar a que resultados concretos fomos levados pela aplicação de tais resoluções e fazer um esforço coletivo que conduza à elaboração de soluções adequadas à situação do Brasil de hoje, partindo do princípio de que nosso objetivo final, enquanto comunistas, só pode ser um: a construção da sociedade socialista e do comunismo em nossa Terra. E para isso, é imprescindível que todos aqueles que queiram contribuir para a vitória desses objetivos unam suas forças e procurem chegar a um programa comum, sem cair nem na cópia de modelos estrangeiros, nem na negação das leis gerais do desenvolvimento social.
Quando me referi à necessidade de formular o programa dos comunistas, tenho em vista chegarmos, através de um processo de discussão efetivamente livre, à elaboração do caminho para o socialismo nas condições brasileiras e à sua aprovação de forma democrática.
Como já tive ocasião de assinalar, a própria prática social vem mostrando o quanto as forças de "esquerda" estão atrasadas na realização desse objetivo. Não pretendo apresentar nesta carta uma proposta de programa. Sou de opinião que essa tarefa só poderá ser realizada com a colaboração de todos que, em nosso País, estão empenhados na luta pelo socialismo, comunistas ou não, membros do PCB, de outras organizações de "esquerda" ou "independentes".
Penso que o eixo central desse programa deve ser tal que apresente, com a necessária clareza, qual o processo que, nas condições de nosso País, poderá e deverá ligar a luta atual pela derrota definitiva da ditadura e a conquista de um regime democrático com a luta pelo socialismo no Brasil.
Trata-se, portanto, de se enfrentar e dar solução a um conjunto de questões teóricas e práticas de grande complexidade. Questões que só poderão ser elaboradas através do estudo aprofundado das transformações econômicas, sociais, políticas e culturais que se vêm processando em nosso País, bem como das novas condições em que se encontra o mundo na atualidade.
Penso que, na elaboração do programa é necessário partir de algumas idéias básicas que pretendo desenvolver posteriormente, para os debates do VII Congresso. Em primeiro lugar, partir do pressuposto de que cabe aos comunistas, desde já, organizar e unir as massas trabalhadoras na luta pelas reivindicações econômicas e políticas que se apresentam no próprio processo de luta contra a ditadura. É partindo dessas lutas, da atividade cotidiana junto aos mais diferentes setores populares, principalmente junto à classe operária, que poderemos avançar no sentido do esclarecimento das massas para que cheguem à compreensão da necessidade das transformações radicais de cunho antimonopolista, antiimperialista e antilatifundiário. É necessário mostrar aos trabalhadores que os grandes problemas que afetam a vida de nosso povo só poderão ser solucionados com a liquidação do poder dos monopólios nacionais e estrangeiros e do latifúndio, e que isto só será conseguido com a formação de um bloco de forças antimonopolistas, antiimperialistas e antilatifundiárias, capaz de assumir o poder e de dar início a essas transformações. Poder que, pelo seu próprio caráter, significará um passo decisivo rumo ao socialismo. E para que esse processo tenha êxito, é indispensável que a classe operária – a única conseqiientemente revolucionária – seja capaz de exercer o papel dirigente do referido bloco de forças. Mas este papel dirigente só se conquista na luta. O dever dos comunistas é exatamente o de contribuir para que esse objetivo seja alcançado.
Companheiros e amigos!
Esta carta constitui como que a reafirmação da confiança que tenho nos comunistas e na classe operária, na sua capacidade de reflexão sobre a grave situação que atravessa o PCB. Chegou o momento em que é indispensável que os comunistas rompam com a passividade e tomem os destinos do PCB em suas mãos, rebelando-se contra as arbitrariedades e os métodos mandonistas de direção, e tratando de eleger, em todos os níveis partidários, direções que realmente sejam a expressão democrática da maioria dos comunistas. Penso ter evidenciado o quanto tem de excepcional a situação que me levou a formular este apelo a todos os comunistas para iniciar um processo de mudanças radicais que deverá ser coroado com a discussão e aprovação democráticas de uma orientação verdadeiramente revolucionária e a eleição também democrática de um novo tipo de direção à altura desta nova orientação.
Rio de Janeiro, março de 1980.
Luiz Carlos Prestes
Fonte: marxist.org
Quem foi Luiz Carlos Prestes?
"Temos os comunistas, uma missão histórica a cumprir e que só a nós pertence. Unicamente os comunistas podem ser os porta-bandeiras dos interesses avançados da classe operária e atuar como seu destacamento de vanguarda, organizado e consciente." (A Situação Política e a Luta por um Governo Nacionalista e Democrático, 1959)
Luiz Carlos Prestes nasceu em 3 de janeiro de 1898, em Porto Alegre, RS, filho de Antonio Pereira Prestes, um oficial do Exército, e Leocádia Felizardo Prestes. Órfão de pai e com a família passando por necessidades financeiras, Prestes decide-se pela carreira militar tendo estudado no Colégio Militar do Rio de Janeiro tendo sido diplomado Engenheiro Militar em 1920, aos 22 anos como primeiro aluno de sua turma.
Em 1922 participou dos preparativos para o levante contra o governo federal. Participou do movimento revolucionário de 1924, que pretendia depor o presidente Artur Bernardes tendo comandado as forças revolucionárias no nordeste do Rio Grande do Sul, tendo iniciado a famosa "marcha da coluna", que atravessou o Brasil de sul a norte e de leste a oeste, tendo percorrido mais de vinte e cinco mil quilômetros a pé, o que passou para a história com o nome de "Coluna Prestes".
Em 1927 asila-se na Bolívia, em dezembro deste ano recebe em Puerto Soares de Astrogildo Pereira, secretário do Partido Comunista do Brasil - PCB - (até 1961 essa era a denominação do Partido, só a partir deste ano é que é alterado para Partido Comunista Brasileiro) que lhe passa vasta literatura marxista.
Em 1930 rompe com o movimento tenentista lançando o seu "Manifesto de Maio" em que prega a revolução. Em 1931 vai para a URSS onde trabalha como engenheiro. Por pressão do Partido Comunista da URSS, em agosto de 1934 é admitido no Partido Comunista do Brasil e no final do ano retorna clandestinamente ao Brasil, acompanhado de Olga Benário agente do Comintern que vem a ser sua companheira e com a qual tem uma filha.
Com a volta ao Brasil é aclamado Presidente de Honra da Aliança Nacional Libertadora organização anti-fascista e anti-imperialista. Em 1935 a Aliança Nacional Libertadora é declarada ilegal e em 1936 Prestes e Olga são presos. Olga é deportada para Alemanha e assassinada na câmara de gás do campo de concentração nazista em Ravensbrück. A filha de ambos Anita Leocádia Prestes nascida na prisão na Alemanha é resgatada pela avó paterna que para tanto liderou intensa campanha internacional.
Em 1943 ocorre a II Conferência Nacional do PCB que elege Prestes, mesmo preso, seu Secretário-Geral. Em abril de 1945 com a anistia Prestes é solto após passar 9 anos na cadeia. Empenha-se na campanha de legalização do PCB o que ocorre em novembro de 1945, e elege-se senador pelo Partido em dezembro do mesmo ano, com mais de 160 mil votos sendo o mais votado da República.
É cassado em janeiro de 1948 e ingressa na clandestinidade, que dura até março de 1958. Em 1964 após o golpe e a implantação da ditadura militar, volta novamente à clandestinidade tendo em 1971 exila-se na URSS onde permanece até 1979, ano em que retorna ao Brasil após a decretação da anistia política.
Em março de 1980 rompe com o Partido através da sua "Carta aos Comunistas". Em 1980, perde o cargo de Secretário-Geral e deixa o PCB. Em 7 de março de 1990 falece no Rio de Janeiro com 92 anos de idade.
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